A Coisa

Havia 200000 (duzentos mil) cidadãos naquele país: 100000 (cem mil) homens e 100000 (cem mil) mulheres.

A Coisa chegou: invisível, inodora, democrática, letal. 

Quando os primeiros 10 (dez) cidadãos morreram, ninguém pareceu se preocupar. Abriram-se as campas, choraram-se os corpos inanimados dentro das caixas de madeira – o habitual. Era a ordem natural das coisas: primeiro o nada, depois a vida, por último o nada, novamente. 

Quando os próximos 10 (dez) pereceram, gerou-se um burburinho. A Comunidade Médica reuniu-se: vasculharam-se os corpos antes de os enfiar em caixas metálicas e depois em caixas de madeira e depois na terra. 

Fizeram-se análises, pesquisas, escreveram-se artigos científicos: alguém descobrira a causa das mortes: era uma coisa mínima, insignificante. Nada havia a temer: a artilharia médica, os medicamentos, tratamentos, terapias eram suficientes para combater este pequeníssimo agente.

A Coisa continuou a reproduzir-se – silenciosa, escondendo-se e multiplicando-se.

Quando 50 (cinquenta) pessoas deram entrada no hospital e mais 10 (dez) morreram, vieram as câmaras, montou-se um circo: a morte é um espectáculo de luzes e cores a que os vivos gostam de assistir. 

Primeiro, criou-se um fosso. De um lado estavam os que acreditavam que a Coisa era má; do outro lado estavam os que acreditavam que a Coisa era irrelevante. No meio, e onde devia estar o bom senso, havia um vazio onde se enterravam os mortos.

Depois, vieram as notícias falsas, o sensacionalismo: onde haviam morrido 10 (dez), cabiam 100 (cem).

Depois, o Governo do País quis fechar todos. A Comunidade Médica havia descoberto que a Coisa se passava pela proximidade. As pessoas deviam afastar-se. Deviam fechar-se dentro de suas casas, e dentro de suas casas, deviam fechar-se em divisões separadas. 

Então veio o pânico. E com o pânico alguns cidadãos deixaram de ser cidadãos, tornaram-se animais, irracionais, guerreando com outros igualmente irracionais. A estupidez havia-se multiplicado mais rapidamente que a Coisa. Ao mesmo tempo que o pânico, numa igual ordem, e com consequências semelhantes, veio o desleixo. Os que não entraram em pânico continuaram a não ligar à Coisa, que se ia replicando, muito satisfeita, enquanto estes levavam as suas vidas como se nada se passasse. 

Quando se descobriu a cura para a Coisa, dos duzentos mil cidadãos sobravam cento e noventa e quatro mil. As pessoas voltaram a sair dos quartos, a abraçarem-se. Na rua gritava-se alto, cantava-se, faziam-se desfiles. Todos sorriam – alheios a que a Coisa era menos letal que a estupidez. 

Deixe uma resposta