Categoria: Cidade

Casas

Somos casas. Quem está de fora não sabe o que se passa dentro das nossas paredes. Às vezes, há quem entre e veja todas as fissuras e imperfeições. Então há os que fogem a sete pés, com medo que o tecto caia. E os que ficam: na esperança de um dia morarem em nós.

Luz

O homem pediu que se fizesse luz.

Gritou. Um grito pesado, como um gesto.

A noite era uma incerteza lutuosa com a qual ele guerreava: braços esticados, movimentando-se freneticamente; pés paralelos, tacteando a superfície.

O homem gritou a palavra luz. O homem gritou a palavra lâmpada. O homem gritou a palavra candeeiro. O homem gritou a palavra lanterna. Nada. A inconsequência do som, das palavras arremessadas como objectos, era gritante. 

As pessoas à sua volta afastavam-se: a loucura é uma forma de distância. 

O menino gritou: abre os olhos.

O homem abriu os olhos: luz. 

Palavras, acção, consequência.

A palavra deve cortar como um bisturi na mão de um cirurgião. 

O Velho

Tudo o que ele fazia com os dias era deixá-los passar.

Sentava-se à espera, enquanto a linha se desenrolava e o novelo se tornava cada vez mais pequeno. 

Não havia muito a fazer. A vida esfarelava-se a um ritmo humano: os órgãos teimavam em ser o que eram, mas com algumas falhas mais evidentes.

De cada vez que metia a garrafa à boca, imaginava o fígado a deteriorar-se: uma esponja velha, com a sua utilidade reduzida a muito pouco.

O mundo perpetuava-se, muito altivo, com todas as suas cores, para lá dos seus olhos. Negava-se a acreditar que aquele ainda era o mesmo mundo de quando era criança. Era um mundo novo, com novos problemas. E esses problemas, de tão presentes, de tão actuais, afiguravam-se maiores que os problemas do passado.

Os médicos disseram-lhe que tinha apenas uns meses de vida. Para quem tem um passado tão longo, uns meses são coisa de minutos. Pensou para si que deveria deixar os problemas no futuro, junto com a morte. Lá, eles não chateiam e, aqui, no passado, ainda são demasiado pequenos.

Deixou-se ficar vendo novas crianças tomando conta das ruas e a repetir, em jeito de epitáfio, entre cada gole: o futuro é uma questão de minutos. 

744

Um miúdo, de sete ou oito anos, em conversa com o pai:

Pai porque é que os autocarros vão de um lado para o outro?

– Porque é assim que funcionam as linhas de autocarros. Uns vão, outros vêm… A linha de autocarro une dois pontos: um de partida, outro de chegada.

– Então é como a vida…

720

No autocarro 720 vai uma menina. Ninguém lhe parece ligar, embora ela gesticule freneticamente, enquanto solta sons agudos indistinguíveis. À sua frente vai – julgo – a sua mãe, ou alguém encarregado de a vigiar. Só lhe vejo os cabelos grisalhos, sem nunca lhe ver a cara. Apesar de todo o aparato que a menina faz, as pessoas passam e nunca se sentam perto, como que com medo de serem contagiadas por uma doença qualquer. A menina tem uma deficiência intelectual. Imagino que siga a caminho do Hospital da Estefânia, com a senhora. Está sempre a sorrir e a gesticular. Parece feliz. E ninguém que tenha a perfeita noção da realidade consegue ser tão feliz e sorrir tanto. As pessoas entram no autocarro e continuam a afastar-se. Terão medo que a felicidade seja contagiante?

711


Sempre que vejo uma pessoa a ler um livro no autocarro, ocorre-me ir até ela e perguntar-lhe se está boa, se é feliz, se me pode dizer que horas são, se no final da história tudo vai ficar bem.           

744

No 744 um homem de cabelo grisalho, baixo, para um homem visivelmente mais novo e mais alto:

– Já ninguém planta nada. Olha, eu lá no meu quintal… Naquele bocadito de terra que lá tenho, sabes? Plantei uns tomates, umas alfaces, umas coisitas. As coisas no supermercado sabem-me todas a água. É pêssegos em Fevereiro, laranjas em Setembro… Anda tudo trocado. É tudo criado em estufas, cheio de hormonas. No outro dia vi um tomate com quase um quilo. Mas aquilo devia ser só água. Água e químicos. Nem tem sabor. As coisas dos supermercados não têm sabor. As pessoas sabem lá o que é um bom tomate, ou uma boa alface. O que é bom sabe a terra. 

756

Ia no 756 quando a vi. Sentou-se à minha frente. Enquanto falava ao telemóvel encaracolava as pontas dos cabelos, num gesto repetido durante todo o percurso. Trazia uma espécie de camisa enrolada nas mangas, com padrões excêntricos e cores berrantes que contrastavam com o moreno leve na pele, e os olhos escuros. O sorriso foi o que mais me prendeu a ela. Por mais que quisesse não conseguia desviar o olhar. Era um sorriso demasiado livre para pertencer. Tinha o tom pérola que encontramos nas maiores luas de verão. Não sei o que havia para lá daquela imagem: nada lhe disse. Nada a mim chegou, também – a não ser a largura daquele sorriso que ainda guardo comigo. E dei por mim a pensar: será o teu sorriso tão bonito como o teu coração? Quis acreditar que sim.