Categoria: Poesia

O inimigo invisível

Eram tempos macabros

e os clássicos não nos haviam preparado para tal guerra

o inimigo invisível subira os muros

obrigara-nos à clausura

desertificara cidades

separara amantes

potenciara a solidão

matara entes queridos

depois dele, nunca mais a realidade seria a mesma:

começaram a temer-se as coisas invisíveis

os olhos cresceram – tornaram-se microscópios – a

evolução tomara conta da espécie

as pessoas do mundo, todas as pessoas do mundo,

começaram a ver o que outrora não conseguiam:

todos os que em tempos pareciam invisíveis, tudo o

que em tempos parecia invisível

e as pessoas do mundo, todas as pessoas do mundo,

viram que há finas partes de matéria, fios, que nos unem 

uns aos outros, que nos tornam dependentes uns dos 

outros, e tão iguais uns aos outros

todas as vidas importam

foi isso que as pessoas do mundo, todas as pessoas do mundo, 

viram

TU

Quis escrever um poema

onde coubessem os teus olhos,

a tua boca, os teus braços,

as tuas pernas,

mas não consegui.

És demasiado grande para espaços

fechados – e as palavras demasiado

pequenas.

Depois olhei a rua da janela, o sol,

as gaivotas com restos de mar nas suas penas.

E imaginei todos os cantos do teu corpo

onde sonhei fazer poemas.

Pousei a caneta e percebi: nenhum horizonte

cabe nas margens do papel.

E o poema encurtou,

até caber no meu peito:

TU

Poema sobre o fim de uma relação

Toda a cidade

se construiu em volta de nós


devo agora condená-la

à ruína?

Pensão Amor

Gostava de pernoitar

dentro do teu coração; encontrar

o conforto de um lar

onde coubéssemos eu e todos

os meus defeitos: as pernas tortas,

o tremor essencial, a minha miopia

para as coisas que se apequenam 

ao longe: a flor, as luzes da pensão

onde jurámos um dia começar 

uma vida a dois

.

Podes cobrar-me a estadia

prometo pagar-te antes de partir

Geodesia

queriam definir a palavra distância

e marcaram dois pontos numa folha:

.                                                       .

uniram-nos com uma linha recta

e disseram ser o menor espaço 

que os separava.

depois foram mais longe:

aqueles dois pontos eram

duas pessoas, 

dois amantes,

e o que os separava

era um oceano – uma 

massa imensa

de água, um

abismo líquido

– e os amantes

alheios a tudo 

isso, acenavam

um para o 

outro

sorriam

um para o

outro

tolos apaixonados

e já não era um 

oceano que os separava

era o amor que 

os unia

como uma

ponte, ou um

hífen 

ligando o 

pronome

ao verbo

Órbita

Ainda os planetas
não haviam tomado o seu rumo
já o meu avô pedalava
a sua velha pasteleira

isto leva-me a crer
que são os homens que definem as órbitas
dos astros. Não o contrário.

Foto: Pedro Agostinho Cruz

Num bar do Cais do Sodré

não sei que música tocava ao fundo
se rock progressivo
uma valsa, ou um tango
talvez fosse apenas alguém
a assobiar uns acordes
de country

love me two times babe

tu do outro lado do balcão
à socapa procurando um parceiro
para um slow

love me twice today

se me tivesses escolhido
não te teria largado quando o
silêncio chegou

love me two times babe
cause I’m goin’ away

Jogo de sombras

entras e acendes a luz

chega primeiro a tua sombra
denunciando o vestido
dançante que trazes
de segunda pele

e eu fico a contemplar
à cabeceira esse jogo de sedução que fazes entre a porta do quarto e a nossa cama

Chuva inventada

O céu

por vezes

também

chora lágrimas de crocodilo

Perturbação Obsessiva-Compulsiva

E eu que sou um maníaco pelas arrumações

adoro quando

me desarrumas os lábios