Categoria: Cidade

A História do Homem-Elefante

Era um homem enorme: um exagero anatómico. 

No bairro diziam que ele parecia um elefante, devido ao tamanho excessivo do seu corpo. 

Elefante é um mamífero de grande porte da família Elephantidae. O Homem-Elefante é também um mamífero. Há, portanto, apesar das visíveis diferenças, semelhanças a um nível mais profundo, mais elementar. 

O Homem-Elefante, apesar do seu porte animalesco, do volume exagerado dos seus ossos e músculos, mexe-se com precisão matemática. Os seus movimentos parecem desenhados a régua e esquadro; os passos do Homem são leves, como os de um bailarino.

*

O Homem-Elefante é dono de uma loja de loiças.

Vende pratos com cornucópias roxas desenhadas, jarrões com motivos primaveris, bules de porcelana chinesa. Os corredores entre as prateleiras – onde estão expostos os objectos – têm cerca de um metro de largura. Todos os dias aquele Homem enorme se move entre os estreitos espaços vazios sem tocar no que quer que seja. 

As pessoas do bairro dizem que é magia.

Todos os dias os homens apostam que algo irá cair e partir-se. 

Todos os dias os homens esperam o barulho da loiça a estilhaçar.

Todos os dias o Homem entra na loja de manhã e sai ao final da tarde: apenas o silêncio e o desespero dos homens se alastram. 

*

Um dia, há uma enorme explosão no bairro.

Há bocados de vidro por todo o lado, barulhos de sirenes, restos de agregados e gritos.

Os homens falam uns com os outros, assustados. As suas vozes tremem. 

A vibração causada pela explosão propaga-se até à loja do Homem-Elefante, seguindo a densidade do chão, subindo as prateleiras de metal e madeira, chegando à cerâmica. 

Todos os objectos tremem e alguns caem no chão. Partem-se.

Ninguém liga ao sucedido (a não ser o Homem-Elefante, que varre os cacos e os deposita no caixote do lixo).

No final da tarde o Homem sai, com a mesma elegância de qualquer outro dia, da loja. 

A caminho de casa cumprimenta os homens ainda aturdidos com um gesto saído de um manual de geometria.

O caos é inevitável: uma lei universal. 


O nº 11

O homem viu: cavaram-se dois buracos.

Num escondeu-se um corpo: saco anatómico desprovido de vida. No outro inauguraram-se as fundações de um prédio: caixote de betão procurando vida.

Foi assim que se ergueu o número 11. Bloco, após bloco, após bloco, após bloco, após bloco, até se cruzar com o céu; de agredir o azul com o seu corpo rectangular e cinzento.

Terminadas as obras, encheram-se as fracções com gente. 

No lugar onde o corpo havia sido enterrado cresceu uma macieira. Em torno da macieira foi criado um jardim com relva e um caminho de pedras calcárias, que desaguava na entrada do prédio onde dormia o homem. O indigente não queria abrigo, não pedia uma casa; também não pedia dinheiro – o que espantava os moradores. Limitava-se a estar ali, olhando a árvore. O porteiro – ser de massa considerável, mas estático como uma montanha – desprendia palavras de ódio, tentando expulsá-lo: não há nada tão nojento quanto uma pessoa inútil.

O homem alimentava-se das maçãs que a árvore oferecia: pequena dádiva divina.

Por baixo da terra, as raízes da árvore embrulhavam o corpo; alimentavam-se da sua morte, da sua, aparente, inutilidade. 

Dentro das casas as famílias cresciam: alimentando-se uns dos outros: dinheiro, paciência, tempo. Tudo se resume a pequenos circuitos, aparentemente fechados, mas todos ligados, na enorme engrenagem da vida. 

A inutilidade é uma condição aparente.

Poema sobre o fim de uma relação

Toda a cidade

se construiu em volta de nós


devo agora condená-la

à ruína?

758

Ouvido no autocarro,

dito por um senhor de muletas:

– A vida é assim… Passa-se depressa.

702

Dito por uma senhora de meia idade:

– Os pobres é que carregam os sacos dos ricos.

O menino e o amor

O menino brincava de desenhar corações.
Eram desenhos muito pouco precisos, sem grande cuidado: corações imperfeitos; linhas sem destino, ligadas sem rigor geométrico. O menino desenhava com a mão livre, de memória (havia visto um esquema do coração humano num livro da escola), com o seu traço inocente.
Um dia, num dos corações, escreveu o nome de uma menina. Prendeu-o dentro daqueles limites, muito feliz consigo. Depois desenhou outro, do outro lado, e escreveu o seu nome. Dobrou a folha e os corações ficaram, com os nomes, um sobre o outro: cada um com as suas imperfeições, com as suas linhas infantis e os seus nomes, um sobre o outro.
Foi a primeira noção que o menino teve sobre o amor.

S/ título

Olha: como o sol recorta a silhueta da cidade, as fachadas antigas dos prédios a namorarem, como se a vida não fosse um sopro e tudo se resumisse a betão e fuligem. Vê como as pessoas passam apressadas por nós, alheias ao fuso horário em que vivemos. Eu e tu não somos mais que pó de estrelas, restos cósmicos deixados ao acaso e que, durante esse acaso, se encontraram e deram as mãos e formaram uma coisa maior: um corpo celeste, que cresce todos os dias mais um bocadinho. Vês? Como os meus olhos se perdem de ternura nos teus; nesses trilhos secretos onde não deixas ninguém entrar com medo que descubram as tuas fragilidades. Mas não somos sempre rocha. Por vezes somos um pouco mais vulneráveis: não somos a faca, somos a carne; não somos o osso, somos o sangue que escorre e cai e se dissipa por todo o lado. Somos isso tudo. Deita a cabeça sobre o meu peito e sente a orquestra que dentro do meu corpo toca para ti – só para ti; sempre para ti. E deixa-me olhar-te enquanto os teus olhos se fecham e a noite cai sobre a cidade imune ao brilho que construímos juntos, aqui dentro, onde as estrelas escolheram repousar.

Num bar do Cais do Sodré

não sei que música tocava ao fundo
se rock progressivo
uma valsa, ou um tango
talvez fosse apenas alguém
a assobiar uns acordes
de country

love me two times babe

tu do outro lado do balcão
à socapa procurando um parceiro
para um slow

love me twice today

se me tivesses escolhido
não te teria largado quando o
silêncio chegou

love me two times babe
cause I’m goin’ away

Jogo de sombras

entras e acendes a luz

chega primeiro a tua sombra
denunciando o vestido
dançante que trazes
de segunda pele

e eu fico a contemplar
à cabeceira esse jogo de sedução que fazes entre a porta do quarto e a nossa cama

Exame de Optometria

Às vezes, os olhos

não chegam para veres

o que precisas

de ver

(Fecha-os)