Uma pistola pousada em cima da mesa.
O homem fá-la girar. O objecto roda sobre um eixo vertical, o cano apontando para cada uma das posições: 360 possibilidades de disparo, mas apenas três correspondem a alvos de carne e osso – todas as outras são coisas inanimadas: paredes, estantes com livros, uma janela que dá para um jardim (o vidro, sujo, dá a ideia de um nevoeiro denso, caindo sobre o verde da relva e das plantas rasteiras, o amarelo de certas flores), o cadeirão bege ratado.
Sentados do outro lado da mesa e amarrados às suas respectivas cadeiras, estão um Homem Velho e um Rapazinho.
O homem que roda a pistola está de frente para eles.
O velho tem a pele enrugada, cabelo branco, farto, penteado com um risco ao meio, um fato castanho de fazenda, camisa com os colarinhos bem engomados, com um botão aberto na zona do pescoço, o primeiro, a maçã de Adão exposta, engole em seco, respira fundo, as pálpebras subindo e descendo muito rapidamente; mexe as mãos atrás das costas, roda os pulsos, a corda causa-lhe desconforto – é evidente; deve ter perto de 80 anos e antes de se encontrar naquela situação, toda a sua vida se regeu segundo certos parâmetros: a bondade, a empatia, a preocupação pelo bem-estar do próximo. Do lado esquerdo está o seu neto: 10 anos, uma vida pela frente. O Rapazinho não parece preocupado com a situação. Aliás, parece divertido. Não se debate e mostra sinais de satisfação: ri muito, quer ver a pistola a disparar. É um rapazinho magro, de braços e pernas ossudos, com cabelo penteado para o lado. Nos seus poucos anos de vida mostrou sinais de certos transtornos emocionais: gosta de matar animais, de os ver sofrer, de infligir certas torturas.
O homem que roda a pistola tem o destino do mundo nas mãos: um dos dois terá de morrer.
Possibilidade 1:
Matar o avô. A escolha parece óbvia. Entre uma criança e um idoso: terminar a vida do idoso. Pensemos em termos lineares: oitenta anos vividos, quantos mais lhe restarão, caso não morra com uma bala alojada no coração? Quanto mais tempo aguentará aquele corpo? A morte é inevitável e, para aquele homem, o final do referencial está mais próximo que a origem do mesmo. A escolha parece óbvia. Mas eis que surge a dúvida moral: o homem foi bom a vida toda; praticou o bem a vida toda: ajudou quem conseguiu ajudar, foi um bom marido, um bom pai, um bom avô. Não merecerá ele viver? Mesmo que apenas por mais umas horas, dias, anos? Porquê matar alguém bom?
Possibilidade 2:
Matar o neto. Uma escolha arriscada. A criança tem 10 anos. Tem-se revelado um ser execrável, um projecto de homem mau, – alguém que tem gozo em infligir a dor noutros – mas é uma criança: um ser por moldar. Quem garante que não pode vir a ser um homem bom? Quem garante que aquilo que é, a sua génese, não é de um homem mau? Um ser, duas portas. Como decidir? Matar uma criança: matar o futuro. Porquê matar o futuro? Porquê terminar uma concepção de algo que poderá vir a ser totalmente diferente? Uma criança. E se ao crescer ele se tornar num ditador, num assassino, num cobarde capaz de matar milhões sem sequer pensar nestas questões? E se ele crescer e se tornar num homem bom, como o avô? Não estará essa característica impressa no código genético?
Um tem de morrer: avô, ou neto.
O homem continua a rodar o objecto. Deixa que o acaso decida. O canhão aponta para uma parede: um disparo absurdo, para o vazio.
O homem olha para cima – parece pedir ajuda a alguém que o olhe de cima, de forma imparcial. Nenhuma resposta lhe chega. O gesto revela-se inconsequente – um tiro no vazio.
Volta a olhar para as possibilidades; o destino do mundo nas mãos. Duas vidas, uma morte. O dilema: matar o passado, matar o futuro.
A pistola pára de rodar. Pega-lhe, ouve-se o som da explosão, do projéctil a sair disparado, a rasgar a pele, quebrar o osso, a alojar-se na carne.
Quem?