Em certa medida o tempo é apenas uma percepção que temos. Um dia é um conjunto de horas; assim como é um conjunto de minutos, ou de segundos. Uma vida pode, então, definir-se num segundo: uma acção; uma vida pode também definir-se num bloco temporal maior: não apenas na pequena parte, no segundo, mas nos restantes dias, ou anos, dessa vida.
O Homem-Bom está no chão. Não se mexe.
Tem o braço esquerdo estendido, tangente à orelha esquerda. O braço direito afaga o ventre, que sangra. As pernas estão numa posição estranha: parecem as pernas de um corredor; a diferença: estão paradas. São a imagem das pernas de alguém que corre.
*
O Homem-Bom foi bom a vida toda.
Mentira: o Homem-Bom foi bom a vida quase toda.
O Homem-Bom deixou de ser bom num segundo. Antes desse segundo, o Homem foi sempre bom.
Toda a gente no bairro o conhecia.
Era o Homem-Bom que ajudava as senhoras a carregar os sacos até suas casas. Diziam, no bairro, que o coração do homem era o maior coração do mundo: um elemento anatómico de proporções sobre-humanas, um músculo muito capaz, não só de bombear sangue, mas de albergar largas quantidades de amor pela humanidade.
Não havia uma pessoa que o Homem-Bom não cumprimentasse. Mesmo quando estas o olhavam desconfiadas, em silêncio, numa atitude muito citadina, muito embrenhada na solidão característica de quem vive as suas vidas dentro de caixas de betão. Ele – o Homem – não se preocupava com essa indiferença.
O Homem-Bom usava um chapéu preto na cabeça e sempre que cumprimentava as pessoas tirava o chapéu com a mão direita e alongava o braço, como se pedisse esmola. Mas o Homem não queria dinheiro. O Homem queria nada. Aquele era um gesto de cortesia; uma forma de respeitar o próximo.
Conclusão: estender o chapéu é um acto de bondade.
*
Foi num dia como qualquer outro que o Homem-Bom passou pelo Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas.
Descrição do sujeito: homem de tez morena, sentado numa cadeira de rodas, aparentemente com as pernas amputadas pelos joelhos. Olhos negros, baços. Um sinal de proporções significativas na testa (imediatamente acima da sobrancelha esquerda). A cadeira de rodas tem um chapéu de sol azul anexado, do lado direito. Tem as unhas da mão direita, estendida em concha, encardidas.
O Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas chamou o Homem-Bom
amigo! amigo! amigo! – três vezes o chamou.
Três vezes o Homem o ouviu e três vezes o ignorou; baixou a cabeça, com vergonha.
Novamente ouviu
amigo! amigo! amigo!
Ignorou. Subiu as escadas. Andou uns metros e então sentiu o frio do metal a entrar pelo ventre.
O Homem-Bom tombou.
O Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas apanhou o chapéu preto do chão e começou a correr. As pernas do Homem-Bom queriam correr com o outro, mas ficaram paradas.
O Homem-Bom foi bom a vida toda.
O Homem-Bom foi bom a vida quase toda.
O Homem-Bom não o foi uma vez.
Conclusão: o erro define o Homem.
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