Categoria: Mitologias

Os homens da minha terra

Aqui, em casa, os homens cheiram a peixe, têm olhos húmidos, mãos gretadas com odor a iodo e tripas, unhas com sarro; fumam cigarros trapezistas e contam histórias de perigos vários: de um gigante bruto que se esconde entre as espumas calmas de Julho. Os homens da minha terra choram nos funerais, apesar de terem peitos-proa – habituados a rasgar o mar em dois; e bebem bagaço, dizem palavrões, exaltam-se nos jogos de futebol. Os homens da minha terra pouco sabem de matemática, ou de outras artes que não envolvam um fio de nylon, mas são poéticos. Poemas ásperos, erodidos, como os corpos dos homens da minha terra.

A Coisa

Havia 200000 (duzentos mil) cidadãos naquele país: 100000 (cem mil) homens e 100000 (cem mil) mulheres.

A Coisa chegou: invisível, inodora, democrática, letal. 

Quando os primeiros 10 (dez) cidadãos morreram, ninguém pareceu se preocupar. Abriram-se as campas, choraram-se os corpos inanimados dentro das caixas de madeira – o habitual. Era a ordem natural das coisas: primeiro o nada, depois a vida, por último o nada, novamente. 

Quando os próximos 10 (dez) pereceram, gerou-se um burburinho. A Comunidade Médica reuniu-se: vasculharam-se os corpos antes de os enfiar em caixas metálicas e depois em caixas de madeira e depois na terra. 

Fizeram-se análises, pesquisas, escreveram-se artigos científicos: alguém descobrira a causa das mortes: era uma coisa mínima, insignificante. Nada havia a temer: a artilharia médica, os medicamentos, tratamentos, terapias eram suficientes para combater este pequeníssimo agente.

A Coisa continuou a reproduzir-se – silenciosa, escondendo-se e multiplicando-se.

Quando 50 (cinquenta) pessoas deram entrada no hospital e mais 10 (dez) morreram, vieram as câmaras, montou-se um circo: a morte é um espectáculo de luzes e cores a que os vivos gostam de assistir. 

Primeiro, criou-se um fosso. De um lado estavam os que acreditavam que a Coisa era má; do outro lado estavam os que acreditavam que a Coisa era irrelevante. No meio, e onde devia estar o bom senso, havia um vazio onde se enterravam os mortos.

Depois, vieram as notícias falsas, o sensacionalismo: onde haviam morrido 10 (dez), cabiam 100 (cem).

Depois, o Governo do País quis fechar todos. A Comunidade Médica havia descoberto que a Coisa se passava pela proximidade. As pessoas deviam afastar-se. Deviam fechar-se dentro de suas casas, e dentro de suas casas, deviam fechar-se em divisões separadas. 

Então veio o pânico. E com o pânico alguns cidadãos deixaram de ser cidadãos, tornaram-se animais, irracionais, guerreando com outros igualmente irracionais. A estupidez havia-se multiplicado mais rapidamente que a Coisa. Ao mesmo tempo que o pânico, numa igual ordem, e com consequências semelhantes, veio o desleixo. Os que não entraram em pânico continuaram a não ligar à Coisa, que se ia replicando, muito satisfeita, enquanto estes levavam as suas vidas como se nada se passasse. 

Quando se descobriu a cura para a Coisa, dos duzentos mil cidadãos sobravam cento e noventa e quatro mil. As pessoas voltaram a sair dos quartos, a abraçarem-se. Na rua gritava-se alto, cantava-se, faziam-se desfiles. Todos sorriam – alheios a que a Coisa era menos letal que a estupidez. 

O Dilema do Mundo

Uma pistola pousada em cima da mesa.

O homem fá-la girar. O objecto roda sobre um eixo vertical, o cano apontando para cada uma das posições: 360 possibilidades de disparo, mas apenas três correspondem a alvos de carne e osso – todas as outras são coisas inanimadas: paredes, estantes com livros, uma janela que dá para um jardim (o vidro, sujo, dá a ideia de um nevoeiro denso, caindo sobre o verde da relva e das plantas rasteiras, o amarelo de certas flores), o cadeirão bege ratado. 

Sentados do outro lado da mesa e amarrados às suas respectivas cadeiras, estão um Homem Velho e um Rapazinho.

O homem que roda a pistola está de frente para eles.

O velho tem a pele enrugada, cabelo branco, farto, penteado com um risco ao meio, um fato castanho de fazenda, camisa com os colarinhos bem engomados, com um botão aberto na zona do pescoço, o primeiro, a maçã de Adão exposta, engole em seco, respira fundo, as pálpebras subindo e descendo muito rapidamente; mexe as mãos atrás das costas, roda os pulsos, a corda causa-lhe desconforto – é evidente; deve ter perto de 80 anos e antes de se encontrar naquela situação, toda a sua vida se regeu segundo certos parâmetros: a bondade, a empatia, a preocupação pelo bem-estar do próximo. Do lado esquerdo está o seu neto: 10 anos, uma vida pela frente. O Rapazinho não parece preocupado com a situação. Aliás, parece divertido. Não se debate e mostra sinais de satisfação: ri muito, quer ver a pistola a disparar. É um rapazinho magro, de braços e pernas ossudos, com cabelo penteado para o lado. Nos seus poucos anos de vida mostrou sinais de certos transtornos emocionais: gosta de matar animais, de os ver sofrer, de infligir certas torturas.

O homem que roda a pistola tem o destino do mundo nas mãos: um dos dois terá de morrer.

Possibilidade 1:

Matar o avô. A escolha parece óbvia. Entre uma criança e um idoso: terminar a vida do idoso. Pensemos em termos lineares: oitenta anos vividos, quantos mais lhe restarão, caso não morra com uma bala alojada no coração? Quanto mais tempo aguentará aquele corpo? A morte é inevitável e, para aquele homem, o final do referencial está mais próximo que a origem do mesmo. A escolha parece óbvia. Mas eis que surge a dúvida moral: o homem foi bom a vida toda; praticou o bem a vida toda: ajudou quem conseguiu ajudar, foi um bom marido, um bom pai, um bom avô. Não merecerá ele viver? Mesmo que apenas por mais umas horas, dias, anos? Porquê matar alguém bom?

Possibilidade 2:

Matar o neto. Uma escolha arriscada. A criança tem 10 anos. Tem-se revelado um ser execrável, um projecto de homem mau, – alguém que tem gozo em infligir a dor noutros – mas é uma criança: um ser por moldar. Quem garante que não pode vir a ser um homem bom? Quem garante que aquilo que é, a sua génese, não é de um homem mau? Um ser, duas portas. Como decidir? Matar uma criança: matar o futuro. Porquê matar o futuro? Porquê terminar uma concepção de algo que poderá vir a ser totalmente diferente? Uma criança. E se ao crescer ele se tornar num ditador, num assassino, num cobarde capaz de matar milhões sem sequer pensar nestas questões? E se ele crescer e se tornar num homem bom, como o avô? Não estará essa característica impressa no código genético?

Um tem de morrer: avô, ou neto. 

O homem continua a rodar o objecto. Deixa que o acaso decida. O canhão aponta para uma parede: um disparo absurdo, para o vazio. 

O homem olha para cima – parece pedir ajuda a alguém que o olhe de cima, de forma imparcial. Nenhuma resposta lhe chega. O gesto revela-se inconsequente – um tiro no vazio.  

Volta a olhar para as possibilidades; o destino do mundo nas mãos. Duas vidas, uma morte. O dilema: matar o passado, matar o futuro. 

A pistola pára de rodar. Pega-lhe, ouve-se o som da explosão, do projéctil a sair disparado, a rasgar a pele, quebrar o osso, a alojar-se na carne.

Quem?

Mulher-Flor

Comecemos pela flor: uma estrutura frágil, de pétalas amarelas.

A flor cresceu entre as pedras da calçada. Desenvolveu-se, entre o solo inóspito, e os pesadíssimos blocos calcários. Uma incongruência. Uma vitória da natureza sobre a civilização.

A Mulher regava a flor. Olhava-a diariamente, falava-lhe, esperava que ninguém a pisasse ou arrancasse. Era um acto de fé.

*

A flor crescia, todos os dias, mais um pouco.

As pessoas, no bairro, ignoravam-na. Era uma coisa insignificante, rasteira; erguida do chão, mas não o suficiente para lhes causar uma impressão.

Para a Mulher, aquela flor era uma forma de o mundo dizer que o que é belo e frágil pode encontrar um caminho entre as pedras e prosperar.

A Mulher apontou: flor = resiliência. Sorriu.

*

Foi num dia igual a qualquer outro dia que a flor cresceu tanto que as pessoas começaram a reparar nela: começaram a dar-lhe atenção. A flor tinha mais de um metro de altura e as suas pétalas criavam uma coroa amarela – tão amarela como o próprio sol. 

Os transeuntes desviavam-se dela.

Ninguém lhe ficava indiferente. Nem as pedras, que agora se erguiam, cedendo à força exercida pelas longas e robustas raízes. 

O tempo passava e a flor prosperava.

A Mulher regava-a e sorria, feliz. Toda ela brilhava. 

A Mulher e a flor eram apenas uma.

A Mulher e a flor nunca cederam aos caprichos sociais, à transparência, às pedras no caminho.

A Mulher e a flor são apenas uma. 

A Mulher-Flor continua a prosperar. 

Uma definição: Mulher = Flor = Resiliência. 


A História do Homem-Bom

Em certa medida o tempo é apenas uma percepção que temos. Um dia é um conjunto de horas; assim como é um conjunto de minutos, ou de segundos. Uma vida pode, então, definir-se num segundo: uma acção; uma vida pode também definir-se num bloco temporal maior: não apenas na pequena parte, no segundo, mas nos restantes dias, ou anos, dessa vida.

O Homem-Bom está no chão. Não se mexe.

Tem o braço esquerdo estendido, tangente à orelha esquerda. O braço direito afaga o ventre, que sangra. As pernas estão numa posição estranha: parecem as pernas de um corredor; a diferença: estão paradas. São a imagem das pernas de alguém que corre. 

*

O Homem-Bom foi bom a vida toda. 

Mentira: o Homem-Bom foi bom a vida quase toda. 

O Homem-Bom deixou de ser bom num segundo. Antes desse segundo, o Homem foi sempre bom.

Toda a gente no bairro o conhecia.

Era o Homem-Bom que ajudava as senhoras a carregar os sacos até suas casas. Diziam, no bairro, que o coração do homem era o maior coração do mundo: um elemento anatómico de proporções sobre-humanas, um músculo muito capaz, não só de bombear sangue, mas de albergar largas quantidades de amor pela humanidade. 

Não havia uma pessoa que o Homem-Bom não cumprimentasse. Mesmo quando estas o olhavam desconfiadas, em silêncio, numa atitude muito citadina, muito embrenhada na solidão característica de quem vive as suas vidas dentro de caixas de betão. Ele – o Homem – não se preocupava com essa indiferença. 

O Homem-Bom usava um chapéu preto na cabeça e sempre que cumprimentava as pessoas tirava o chapéu com a mão direita e alongava o braço, como se pedisse esmola. Mas o Homem não queria dinheiro. O Homem queria nada. Aquele era um gesto de cortesia; uma forma de respeitar o próximo. 

Conclusão: estender o chapéu é um acto de bondade.

*

Foi num dia como qualquer outro que o Homem-Bom passou pelo Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas. 

Descrição do sujeito: homem de tez morena, sentado numa cadeira de rodas, aparentemente com as pernas amputadas pelos joelhos. Olhos negros, baços. Um sinal de proporções significativas na testa (imediatamente acima da sobrancelha esquerda). A cadeira de rodas tem um chapéu de sol azul anexado, do lado direito. Tem as unhas da mão direita, estendida em concha, encardidas. 

O Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas chamou o Homem-Bom

amigo! amigo! amigo! – três vezes o chamou. 

Três vezes o Homem o ouviu e três vezes o ignorou; baixou a cabeça, com vergonha.

Novamente ouviu

amigo! amigo! amigo!

Ignorou. Subiu as escadas. Andou uns metros e então sentiu o frio do metal a entrar pelo ventre. 

O Homem-Bom tombou. 

O Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas apanhou o chapéu preto do chão e começou a correr. As pernas do Homem-Bom  queriam correr com o outro, mas ficaram paradas.

O Homem-Bom foi bom a vida toda.

O Homem-Bom foi bom a vida quase toda. 

O Homem-Bom não o foi uma vez.

Conclusão: o erro define o Homem. 

A História do Homem-Elefante

Era um homem enorme: um exagero anatómico. 

No bairro diziam que ele parecia um elefante, devido ao tamanho excessivo do seu corpo. 

Elefante é um mamífero de grande porte da família Elephantidae. O Homem-Elefante é também um mamífero. Há, portanto, apesar das visíveis diferenças, semelhanças a um nível mais profundo, mais elementar. 

O Homem-Elefante, apesar do seu porte animalesco, do volume exagerado dos seus ossos e músculos, mexe-se com precisão matemática. Os seus movimentos parecem desenhados a régua e esquadro; os passos do Homem são leves, como os de um bailarino.

*

O Homem-Elefante é dono de uma loja de loiças.

Vende pratos com cornucópias roxas desenhadas, jarrões com motivos primaveris, bules de porcelana chinesa. Os corredores entre as prateleiras – onde estão expostos os objectos – têm cerca de um metro de largura. Todos os dias aquele Homem enorme se move entre os estreitos espaços vazios sem tocar no que quer que seja. 

As pessoas do bairro dizem que é magia.

Todos os dias os homens apostam que algo irá cair e partir-se. 

Todos os dias os homens esperam o barulho da loiça a estilhaçar.

Todos os dias o Homem entra na loja de manhã e sai ao final da tarde: apenas o silêncio e o desespero dos homens se alastram. 

*

Um dia, há uma enorme explosão no bairro.

Há bocados de vidro por todo o lado, barulhos de sirenes, restos de agregados e gritos.

Os homens falam uns com os outros, assustados. As suas vozes tremem. 

A vibração causada pela explosão propaga-se até à loja do Homem-Elefante, seguindo a densidade do chão, subindo as prateleiras de metal e madeira, chegando à cerâmica. 

Todos os objectos tremem e alguns caem no chão. Partem-se.

Ninguém liga ao sucedido (a não ser o Homem-Elefante, que varre os cacos e os deposita no caixote do lixo).

No final da tarde o Homem sai, com a mesma elegância de qualquer outro dia, da loja. 

A caminho de casa cumprimenta os homens ainda aturdidos com um gesto saído de um manual de geometria.

O caos é inevitável: uma lei universal. 


O Amor, segundo Madame V.

– Sabe, sr. Peterr, os nossos desejos são coisas perigosas. Falo do desejo da carne, per carnem, essa cobiça por alguém que não nos pertence, mas que desejamos a todo o custo possuir, ter, saborear, cheirar. Falo dessa força lasciva que por vezes confundimos com o amor, porque a carne é facilmente amada, o pior é olhar depois, desvendar a cortina para lá da pele, do músculo, do osso. O essencial, o etéreo. Os nossos desejos são selvagens, irracionais. A beleza é para nós uma forma de pornografia visual, uma urgência de um orgasmo, de um movimento físico, de uma contração muscular, de uma libertação. O amor é outra coisa. O amor não é a admiração da beleza da rosa; a vontade de a colher da terra e a meter num jarro a enfeitar a casa. O amor é o perceber o cheiro dela e o que isso nos desperta, nos faz sentir, um conforto como voltar a outros lugares, algo que não é físico, palpável, efémero. É ir além disso. Criar memórias, adivinhar futuros. É perceber a beleza da pétala e o porquê dos espinhos. É querer picar-se nesses espinhos, porque essa dor o faz compreender a sua função, o faz viver esse amor. Porque o amor deve ser como a vida: deve doer, deve ser eufórico, deve marcar a carne, ser ferida e cicatriz e tudo o que nem sempre é belo. Porque o amor também é feio, também destrói para construir e constrói para destruir. O desejo não. O desejo faz festas na carne, culmina com o prazer e depois segue o seu caminho. É uma brisa suave. Mas eu não creio que seja isso que queremos. Nós queremos a tempestade, os ventos fortes que abanem tudo por dentro, que nos tirem tudo do sítio, que remexam as areias, que arredondem as esquinas, que nos levantem os telhados. Estou errada, sr. Peterr?

O nº 11

O homem viu: cavaram-se dois buracos.

Num escondeu-se um corpo: saco anatómico desprovido de vida. No outro inauguraram-se as fundações de um prédio: caixote de betão procurando vida.

Foi assim que se ergueu o número 11. Bloco, após bloco, após bloco, após bloco, após bloco, até se cruzar com o céu; de agredir o azul com o seu corpo rectangular e cinzento.

Terminadas as obras, encheram-se as fracções com gente. 

No lugar onde o corpo havia sido enterrado cresceu uma macieira. Em torno da macieira foi criado um jardim com relva e um caminho de pedras calcárias, que desaguava na entrada do prédio onde dormia o homem. O indigente não queria abrigo, não pedia uma casa; também não pedia dinheiro – o que espantava os moradores. Limitava-se a estar ali, olhando a árvore. O porteiro – ser de massa considerável, mas estático como uma montanha – desprendia palavras de ódio, tentando expulsá-lo: não há nada tão nojento quanto uma pessoa inútil.

O homem alimentava-se das maçãs que a árvore oferecia: pequena dádiva divina.

Por baixo da terra, as raízes da árvore embrulhavam o corpo; alimentavam-se da sua morte, da sua, aparente, inutilidade. 

Dentro das casas as famílias cresciam: alimentando-se uns dos outros: dinheiro, paciência, tempo. Tudo se resume a pequenos circuitos, aparentemente fechados, mas todos ligados, na enorme engrenagem da vida. 

A inutilidade é uma condição aparente.

O universo é uma teia

Desenho: duas rectas perpendiculares.

O ponto de intercepção estava claro, mas ele reforçou-o com um círculo carregado a tinta preta.

O movimento da mão era orgânico, humano. Cada uma das rectas representava uma cronologia, uma pessoa: desde a sua concepção, até à sua memória.

O círculo preto representava o momento em que aquelas cronologias se cruzariam, se tornariam apenas uma: recta sobre recta. Assumiu esse momento como o amor: tudo o que o antecede nos conduz à convergência, tudo o que o sucede nos condena à divergência.

Depois desse ponto e até ao momento da morte efectiva, começava a memória. E depois da memória – avançando continuamente até ao infinito – restava o oblívio: a escuridão total.



O homem e a aranha

O homem dorme. Por cima da sua cabeça, há uma aranha. Todas as noites a aranha desce da sua teia, entra pela orelha do homem, diz-lhe que o ama e, durante o processo, injecta um pouco de veneno – uma quantidade mínima, não capaz de o matar. Após esta acção o bicho regressa ao canto do quarto, onde fez casa. O homem acorda. Todos os dias se sente um pouco mais fraco, mas não liga: a vida desgasta o corpo: a erosão é um processo natural.

O homem vive sozinho. 

Mentira: o homem não vive sozinho. Há a aranha. Uma companhia insignificante, mas uma companhia.

Uma noite, a aranha desce da sua teia e resolve fazer casa no ouvido do homem. Diz-lhe isso mesmo: quero fazer casa no teu ouvido (volta a injectar um pouco de veneno: há rotinas que devem ser cumpridas).

Nessa manhã, o homem não acordou. Tinha morrido. O corpo tinha cedido aos caprichos do veneno. 

A aranha abandonou o ouvido do homem: um corpo morto não é casa para os vivos; um ouvido que não ouve é um órgão inútil: perdeu a sua função.

O homem ali ficou, deitado, abandonado à sua sorte: o veneno só serve aos vivos; o amor só serve aos vivos: depois do fim, transforma-se em memória. 

O canto do quarto está vazio: casa desocupada.