Sem título

Estava um dia muito parecido com o de hoje. Pela janela aberta, acima da minha cabeça, entrava uma massa de ar quente. O céu azulava-se a espaços, entre as nuvens altas de um tom acinzentado. Apenas se ouvia o bichanar da vassoura a varrer a fuligem e a areia dos terraços, a torneira a pingar para o balde preto. Sei que estava a ler, mas não me recordo o quê – um livro qualquer da minha biblioteca, certamente. Perpetuava-se a normalidade excessiva de um dia de verão; a calma. E então o som oco de um corpo a bater contra outro: a anatomia humana – ossos, músculos e tudo o resto – a chocar contra a pedra fria das escadas. Quatro degraus; uma distância relativamente pequena, uma altura que não chega a causar vertigens. Levantei-me, num salto. O livro voou por cima de mim, num movimento parabólico de projéctil, aterrando sobre a almofada do sofá. Ao passar a portada que dá para o terraço vi a minha mãe estendida, a respirar muito aflita, como quem vem à tona depois de um longo mergulho no mar; as costas contra os degraus, marcadas na zona do impacto. Ajudei-a a levantar-se. E enquanto o fazia pensava em como uma queda tão pequena, de uma altura tão insignificante, pode matar uma pessoa. Apenas um segundo em que o atrito entre os pés e o chão se quebra e ficamos condenados ao vazio que antecede a inevitável colisão. Nem todas as quedas nos matam, mas desde esse dia que olho para aqueles quatro degraus, aquele pequeno desnível, com um outro respeito. 

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