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A vida
é uma corrida
condenada
desde
o tiro de
partida
A angústia do trabalhador quando vai ao Multibanco
A vida
toda à espera
que me paguem
que me paguem
que me paguem
e vou daqui
de bolsos
vazios
A dança
A rapariga entendia muito pouco a dança. Percebia o movimento, a frequência; essas coisas a que os materiais estão sujeitos. Havia lido, também, algures, que os seres humanos, feitos de carne e osso, têm muito em comum com as estrelas, a um nível atómico. Então, deu por si a olhar para cima: o céu noturno brilhando em pequenos pontos de luz. Comoveu-se. Principiou o movimento rotacional: o dorso dobrado, os braços esticados, tentando alcançar o horizonte celeste. O seu caos interno como ignição: uma bailarina movendo-se segundo o ritmo da vida; uma estrela dançante movendo-se segundo o ritmo da vida.
Sem título
Olho para as coisas e a poesia já lá está. Não me sinto capaz de certas arrogâncias: acreditar que o poema surgiu devido a uma combustão espontânea que se deu quando olhei a árvore, cheirei a flor, senti a textura da terra entre os dedos, ouvi os pássaros, ou provei o fruto. Não. O poema não surgiu em virtude de mim. Já lá estava. Era anterior à minha percepção. Eu apenas o extraí – como alguém extrai uma farpa de madeira cravada na carne.
Não fui eu quem fez a poesia: é a poesia que nos faz.
Futurologia
Passar
os dias tentando
adivinhar
o calibre certo da pistola
que me há-de
matar
Literatura
Disseram-me, no outro dia, que os poetas
falam muito dos desgostos de amor
Não respondi
mas devia
ter dito que sem desgostos
– de amor ou não –
não haveria literatura.
Se é felicidade que procuras
lê livros de auto-ajuda
conta mentiras ao espelho
até que ele te repita verdades.
Ou abre uma garrafa de vinho
saboreia o travo amargo e aguarda que as palavras
te cheguem à boca.
Verás: a literatura é tudo o que
não conseguimos digerir
Língua
labareda
dançante
que queima
na mesma proporção
que arrepia
Entre a carne e a poesia (há o osso)
Celestino era talhante nos dias úteis e poeta nos fins-de-semana. Depois de uma semana a esquartejar carcaças, chegou a casa, lavou bem as mãos, garantiu não ter sangue nenhum debaixo das unhas, pegou na caneta – como se pegasse num cutelo – e apontou no papel aquilo que lhe pareceu uma boa conclusão para um poema:
Cuidado
Sei manejar objectos cortantes
Contos infantis em tempo de pandemia
Ao Rui Rocha
cada um na sua casa
seguindo as recomendações
da DGS
os Três Porquinhos
olhavam a rua
das respectivas janelas
não tardou muito
até que a GNR
fosse contactada:
havia um Lobo Mau
a furar a quarentena