O Velho

Tudo o que ele fazia com os dias era deixá-los passar.

Sentava-se à espera, enquanto a linha se desenrolava e o novelo se tornava cada vez mais pequeno. 

Não havia muito a fazer. A vida esfarelava-se a um ritmo humano: os órgãos teimavam em ser o que eram, mas com algumas falhas mais evidentes.

De cada vez que metia a garrafa à boca, imaginava o fígado a deteriorar-se: uma esponja velha, com a sua utilidade reduzida a muito pouco.

O mundo perpetuava-se, muito altivo, com todas as suas cores, para lá dos seus olhos. Negava-se a acreditar que aquele ainda era o mesmo mundo de quando era criança. Era um mundo novo, com novos problemas. E esses problemas, de tão presentes, de tão actuais, afiguravam-se maiores que os problemas do passado.

Os médicos disseram-lhe que tinha apenas uns meses de vida. Para quem tem um passado tão longo, uns meses são coisa de minutos. Pensou para si que deveria deixar os problemas no futuro, junto com a morte. Lá, eles não chateiam e, aqui, no passado, ainda são demasiado pequenos.

Deixou-se ficar vendo novas crianças tomando conta das ruas e a repetir, em jeito de epitáfio, entre cada gole: o futuro é uma questão de minutos. 

744

Um miúdo, de sete ou oito anos, em conversa com o pai:

Pai porque é que os autocarros vão de um lado para o outro?

– Porque é assim que funcionam as linhas de autocarros. Uns vão, outros vêm… A linha de autocarro une dois pontos: um de partida, outro de chegada.

– Então é como a vida…

720

No autocarro 720 vai uma menina. Ninguém lhe parece ligar, embora ela gesticule freneticamente, enquanto solta sons agudos indistinguíveis. À sua frente vai – julgo – a sua mãe, ou alguém encarregado de a vigiar. Só lhe vejo os cabelos grisalhos, sem nunca lhe ver a cara. Apesar de todo o aparato que a menina faz, as pessoas passam e nunca se sentam perto, como que com medo de serem contagiadas por uma doença qualquer. A menina tem uma deficiência intelectual. Imagino que siga a caminho do Hospital da Estefânia, com a senhora. Está sempre a sorrir e a gesticular. Parece feliz. E ninguém que tenha a perfeita noção da realidade consegue ser tão feliz e sorrir tanto. As pessoas entram no autocarro e continuam a afastar-se. Terão medo que a felicidade seja contagiante?

A vassoura da minha avó

O pai da minha avó dizia que a vassoura dela era mágica: encontrava sempre pó (mesmo quando o chão estava limpo). A vassoura da minha avó passou para a minha mãe. Continua a ser um objecto místico, com propriedades muito particulares: encontra – sempre – pó no chão limpo. Quando a minha mãe a usa recordamos a minha avó e o pai da minha avó (que não conheci). Os objectos mágicos são assim: trazem de volta, por momentos, aqueles que já partiram.

711


Sempre que vejo uma pessoa a ler um livro no autocarro, ocorre-me ir até ela e perguntar-lhe se está boa, se é feliz, se me pode dizer que horas são, se no final da história tudo vai ficar bem.           

Dislexia

Tive uma professora de biologia, no secundário, que me dizia que só as pessoas inteligentes sofriam de dislexia. Ela era disléxica.

Isto causou-me uma certa confusão: seria aquele um fenómeno biológico comprovado? Ou estaria ela a usar a dislexia como credibilização das suas capacidades cognitivas?

Ainda hoje me sinto atormentado com esta situação. 

744

No 744 um homem de cabelo grisalho, baixo, para um homem visivelmente mais novo e mais alto:

– Já ninguém planta nada. Olha, eu lá no meu quintal… Naquele bocadito de terra que lá tenho, sabes? Plantei uns tomates, umas alfaces, umas coisitas. As coisas no supermercado sabem-me todas a água. É pêssegos em Fevereiro, laranjas em Setembro… Anda tudo trocado. É tudo criado em estufas, cheio de hormonas. No outro dia vi um tomate com quase um quilo. Mas aquilo devia ser só água. Água e químicos. Nem tem sabor. As coisas dos supermercados não têm sabor. As pessoas sabem lá o que é um bom tomate, ou uma boa alface. O que é bom sabe a terra. 

Sonhos


Às vezes, mais vale não mexer nos sonhos, para não os estragar. Deixá-los na prateleira, junto aos bibelôs da casa dos nossos avós. Eles sempre nos alertavam que não lhes tocássemos, com as nossas mãos infantis e descuidadas, porque não eram brinquedo e se podiam partir. E assim ficávamos, a contemplar os bibelôs e a sonhar com as histórias de cada um: de onde viriam, para onde iriam, depois. Pelo menos, eu sonhava. Acho que ainda sonho.

756

Ia no 756 quando a vi. Sentou-se à minha frente. Enquanto falava ao telemóvel encaracolava as pontas dos cabelos, num gesto repetido durante todo o percurso. Trazia uma espécie de camisa enrolada nas mangas, com padrões excêntricos e cores berrantes que contrastavam com o moreno leve na pele, e os olhos escuros. O sorriso foi o que mais me prendeu a ela. Por mais que quisesse não conseguia desviar o olhar. Era um sorriso demasiado livre para pertencer. Tinha o tom pérola que encontramos nas maiores luas de verão. Não sei o que havia para lá daquela imagem: nada lhe disse. Nada a mim chegou, também – a não ser a largura daquele sorriso que ainda guardo comigo. E dei por mim a pensar: será o teu sorriso tão bonito como o teu coração? Quis acreditar que sim. 

Sou uma pessoa de gostos simples

sou uma pessoa de gostos simples

a complexidade ocupa muito tempo

e a vida não dura assim tanto

tudo o que quero

é uma frase num muro

antes de ele ser derrubado

antes de se erguerem novos bairros

um ou outro amor no bolso

para me aquecer nas noites frias

uma garrafa de água

para matar a sede

pão para não morrer 

à fome

quero um deus

a quem possa atirar culpas

e uma pedra no sapato

para parar de vez em quando

e contemplar o pôr-do-sol

isto é talvez o mais importante:

o pôr-do-sol, 

o relembrar que os elementos

apesar de próximos

têm uma natural dificuldade

em se misturar