O menino brincava de desenhar corações.
Eram desenhos muito pouco precisos, sem grande cuidado: corações imperfeitos; linhas sem destino, ligadas sem rigor geométrico. O menino desenhava com a mão livre, de memória (havia visto um esquema do coração humano num livro da escola), com o seu traço inocente.
Um dia, num dos corações, escreveu o nome de uma menina. Prendeu-o dentro daqueles limites, muito feliz consigo. Depois desenhou outro, do outro lado, e escreveu o seu nome. Dobrou a folha e os corações ficaram, com os nomes, um sobre o outro: cada um com as suas imperfeições, com as suas linhas infantis e os seus nomes, um sobre o outro.
Foi a primeira noção que o menino teve sobre o amor.
Categoria: Mitologias
O menino e o amor
S/ título
Olha: como o sol recorta a silhueta da cidade, as fachadas antigas dos prédios a namorarem, como se a vida não fosse um sopro e tudo se resumisse a betão e fuligem. Vê como as pessoas passam apressadas por nós, alheias ao fuso horário em que vivemos. Eu e tu não somos mais que pó de estrelas, restos cósmicos deixados ao acaso e que, durante esse acaso, se encontraram e deram as mãos e formaram uma coisa maior: um corpo celeste, que cresce todos os dias mais um bocadinho. Vês? Como os meus olhos se perdem de ternura nos teus; nesses trilhos secretos onde não deixas ninguém entrar com medo que descubram as tuas fragilidades. Mas não somos sempre rocha. Por vezes somos um pouco mais vulneráveis: não somos a faca, somos a carne; não somos o osso, somos o sangue que escorre e cai e se dissipa por todo o lado. Somos isso tudo. Deita a cabeça sobre o meu peito e sente a orquestra que dentro do meu corpo toca para ti – só para ti; sempre para ti. E deixa-me olhar-te enquanto os teus olhos se fecham e a noite cai sobre a cidade imune ao brilho que construímos juntos, aqui dentro, onde as estrelas escolheram repousar.
Luz
O homem pediu que se fizesse luz.
Gritou. Um grito pesado, como um gesto.
A noite era uma incerteza lutuosa com a qual ele guerreava: braços esticados, movimentando-se freneticamente; pés paralelos, tacteando a superfície.
O homem gritou a palavra luz. O homem gritou a palavra lâmpada. O homem gritou a palavra candeeiro. O homem gritou a palavra lanterna. Nada. A inconsequência do som, das palavras arremessadas como objectos, era gritante.
As pessoas à sua volta afastavam-se: a loucura é uma forma de distância.
O menino gritou: abre os olhos.
O homem abriu os olhos: luz.
Palavras, acção, consequência.
A palavra deve cortar como um bisturi na mão de um cirurgião.
O Velho
Tudo o que ele fazia com os dias era deixá-los passar.
Sentava-se à espera, enquanto a linha se desenrolava e o novelo se tornava cada vez mais pequeno.
Não havia muito a fazer. A vida esfarelava-se a um ritmo humano: os órgãos teimavam em ser o que eram, mas com algumas falhas mais evidentes.
De cada vez que metia a garrafa à boca, imaginava o fígado a deteriorar-se: uma esponja velha, com a sua utilidade reduzida a muito pouco.
O mundo perpetuava-se, muito altivo, com todas as suas cores, para lá dos seus olhos. Negava-se a acreditar que aquele ainda era o mesmo mundo de quando era criança. Era um mundo novo, com novos problemas. E esses problemas, de tão presentes, de tão actuais, afiguravam-se maiores que os problemas do passado.
Os médicos disseram-lhe que tinha apenas uns meses de vida. Para quem tem um passado tão longo, uns meses são coisa de minutos. Pensou para si que deveria deixar os problemas no futuro, junto com a morte. Lá, eles não chateiam e, aqui, no passado, ainda são demasiado pequenos.
Deixou-se ficar vendo novas crianças tomando conta das ruas e a repetir, em jeito de epitáfio, entre cada gole: o futuro é uma questão de minutos.
A vassoura da minha avó
O pai da minha avó dizia que a vassoura dela era mágica: encontrava sempre pó (mesmo quando o chão estava limpo). A vassoura da minha avó passou para a minha mãe. Continua a ser um objecto místico, com propriedades muito particulares: encontra – sempre – pó no chão limpo. Quando a minha mãe a usa recordamos a minha avó e o pai da minha avó (que não conheci). Os objectos mágicos são assim: trazem de volta, por momentos, aqueles que já partiram.