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Dislexia

Tive uma professora de biologia, no secundário, que me dizia que só as pessoas inteligentes sofriam de dislexia. Ela era disléxica.

Isto causou-me uma certa confusão: seria aquele um fenómeno biológico comprovado? Ou estaria ela a usar a dislexia como credibilização das suas capacidades cognitivas?

Ainda hoje me sinto atormentado com esta situação. 

Sonhos


Às vezes, mais vale não mexer nos sonhos, para não os estragar. Deixá-los na prateleira, junto aos bibelôs da casa dos nossos avós. Eles sempre nos alertavam que não lhes tocássemos, com as nossas mãos infantis e descuidadas, porque não eram brinquedo e se podiam partir. E assim ficávamos, a contemplar os bibelôs e a sonhar com as histórias de cada um: de onde viriam, para onde iriam, depois. Pelo menos, eu sonhava. Acho que ainda sonho.

Sou uma pessoa de gostos simples

sou uma pessoa de gostos simples

a complexidade ocupa muito tempo

e a vida não dura assim tanto

tudo o que quero

é uma frase num muro

antes de ele ser derrubado

antes de se erguerem novos bairros

um ou outro amor no bolso

para me aquecer nas noites frias

uma garrafa de água

para matar a sede

pão para não morrer 

à fome

quero um deus

a quem possa atirar culpas

e uma pedra no sapato

para parar de vez em quando

e contemplar o pôr-do-sol

isto é talvez o mais importante:

o pôr-do-sol, 

o relembrar que os elementos

apesar de próximos

têm uma natural dificuldade

em se misturar

Sem título

Estava um dia muito parecido com o de hoje. Pela janela aberta, acima da minha cabeça, entrava uma massa de ar quente. O céu azulava-se a espaços, entre as nuvens altas de um tom acinzentado. Apenas se ouvia o bichanar da vassoura a varrer a fuligem e a areia dos terraços, a torneira a pingar para o balde preto. Sei que estava a ler, mas não me recordo o quê – um livro qualquer da minha biblioteca, certamente. Perpetuava-se a normalidade excessiva de um dia de verão; a calma. E então o som oco de um corpo a bater contra outro: a anatomia humana – ossos, músculos e tudo o resto – a chocar contra a pedra fria das escadas. Quatro degraus; uma distância relativamente pequena, uma altura que não chega a causar vertigens. Levantei-me, num salto. O livro voou por cima de mim, num movimento parabólico de projéctil, aterrando sobre a almofada do sofá. Ao passar a portada que dá para o terraço vi a minha mãe estendida, a respirar muito aflita, como quem vem à tona depois de um longo mergulho no mar; as costas contra os degraus, marcadas na zona do impacto. Ajudei-a a levantar-se. E enquanto o fazia pensava em como uma queda tão pequena, de uma altura tão insignificante, pode matar uma pessoa. Apenas um segundo em que o atrito entre os pés e o chão se quebra e ficamos condenados ao vazio que antecede a inevitável colisão. Nem todas as quedas nos matam, mas desde esse dia que olho para aqueles quatro degraus, aquele pequeno desnível, com um outro respeito. 

Lx

As ruas ainda guardam o teu nome

o teu rosto continua a brilhar intermitente

como os néons perdidos pelas fachadas

nas montras o reflexo de outros tempos,

as esquinas de outros beijos

(ainda os sentes nos lábios, também?)

Toda a cidade se construiu em volta de nós

devo agora condená-la à ruína? 

é Inverno e o céu gelado teima

em cair sobre as nossas cabeças

sigo o meu caminho, o mesmo 

itinerário de sempre, os mesmos

passos apressados de sempre

Tento atravessar a rua para chegar 

aonde me esperam, mas o semáforo 

teima em ficar vermelho

-Tenho a vida parada, suspiro

E então olho em volta, à procura

de respostas, à procura de algo

concreto: meia dúzia de luzes

acesas em meia dúzia de

apartamentos diferentes

o homem das castanhas

um carro a roçar o limite

de velocidade

o velho do café a esbracejar

Tudo isto em trinta e tal segundos

até o semáforo mudar de cor:

está verde,

é altura de avançar.