Estação de Metro de São Sebastião, 8:37

Filas de glúteos subindo os degraus, um a um, de forma ordeira. Uma luta terrível contra o tempo, contra o tecido das roupas, contra a meteorologia das massas frias e húmidas, contra o betão sufocante, contra as correntes que esticam até onde devem esticar. Os rostos pesados, cansados, cinzelados pelo desmazelo da terrível morte quotidiana. Os rostos fechados que gritam o desespero dos animais domesticados, julgando-se livres – tontos – na selva urbana. 

TU

Quis escrever um poema

onde coubessem os teus olhos,

a tua boca, os teus braços,

as tuas pernas,

mas não consegui.

És demasiado grande para espaços

fechados – e as palavras demasiado

pequenas.

Depois olhei a rua da janela, o sol,

as gaivotas com restos de mar nas suas penas.

E imaginei todos os cantos do teu corpo

onde sonhei fazer poemas.

Pousei a caneta e percebi: nenhum horizonte

cabe nas margens do papel.

E o poema encurtou,

até caber no meu peito:

TU

A Natureza

A Natureza faz o seu trabalho:

encarrega-se

de crescer

e ocupar

Objectivo de vida

Ser feito um rio:
nascer
num fio

e avançar

até ser
mar

Mulher-Flor

Comecemos pela flor: uma estrutura frágil, de pétalas amarelas.

A flor cresceu entre as pedras da calçada. Desenvolveu-se, entre o solo inóspito, e os pesadíssimos blocos calcários. Uma incongruência. Uma vitória da natureza sobre a civilização.

A Mulher regava a flor. Olhava-a diariamente, falava-lhe, esperava que ninguém a pisasse ou arrancasse. Era um acto de fé.

*

A flor crescia, todos os dias, mais um pouco.

As pessoas, no bairro, ignoravam-na. Era uma coisa insignificante, rasteira; erguida do chão, mas não o suficiente para lhes causar uma impressão.

Para a Mulher, aquela flor era uma forma de o mundo dizer que o que é belo e frágil pode encontrar um caminho entre as pedras e prosperar.

A Mulher apontou: flor = resiliência. Sorriu.

*

Foi num dia igual a qualquer outro dia que a flor cresceu tanto que as pessoas começaram a reparar nela: começaram a dar-lhe atenção. A flor tinha mais de um metro de altura e as suas pétalas criavam uma coroa amarela – tão amarela como o próprio sol. 

Os transeuntes desviavam-se dela.

Ninguém lhe ficava indiferente. Nem as pedras, que agora se erguiam, cedendo à força exercida pelas longas e robustas raízes. 

O tempo passava e a flor prosperava.

A Mulher regava-a e sorria, feliz. Toda ela brilhava. 

A Mulher e a flor eram apenas uma.

A Mulher e a flor nunca cederam aos caprichos sociais, à transparência, às pedras no caminho.

A Mulher e a flor são apenas uma. 

A Mulher-Flor continua a prosperar. 

Uma definição: Mulher = Flor = Resiliência. 


A História do Homem-Bom

Em certa medida o tempo é apenas uma percepção que temos. Um dia é um conjunto de horas; assim como é um conjunto de minutos, ou de segundos. Uma vida pode, então, definir-se num segundo: uma acção; uma vida pode também definir-se num bloco temporal maior: não apenas na pequena parte, no segundo, mas nos restantes dias, ou anos, dessa vida.

O Homem-Bom está no chão. Não se mexe.

Tem o braço esquerdo estendido, tangente à orelha esquerda. O braço direito afaga o ventre, que sangra. As pernas estão numa posição estranha: parecem as pernas de um corredor; a diferença: estão paradas. São a imagem das pernas de alguém que corre. 

*

O Homem-Bom foi bom a vida toda. 

Mentira: o Homem-Bom foi bom a vida quase toda. 

O Homem-Bom deixou de ser bom num segundo. Antes desse segundo, o Homem foi sempre bom.

Toda a gente no bairro o conhecia.

Era o Homem-Bom que ajudava as senhoras a carregar os sacos até suas casas. Diziam, no bairro, que o coração do homem era o maior coração do mundo: um elemento anatómico de proporções sobre-humanas, um músculo muito capaz, não só de bombear sangue, mas de albergar largas quantidades de amor pela humanidade. 

Não havia uma pessoa que o Homem-Bom não cumprimentasse. Mesmo quando estas o olhavam desconfiadas, em silêncio, numa atitude muito citadina, muito embrenhada na solidão característica de quem vive as suas vidas dentro de caixas de betão. Ele – o Homem – não se preocupava com essa indiferença. 

O Homem-Bom usava um chapéu preto na cabeça e sempre que cumprimentava as pessoas tirava o chapéu com a mão direita e alongava o braço, como se pedisse esmola. Mas o Homem não queria dinheiro. O Homem queria nada. Aquele era um gesto de cortesia; uma forma de respeitar o próximo. 

Conclusão: estender o chapéu é um acto de bondade.

*

Foi num dia como qualquer outro que o Homem-Bom passou pelo Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas. 

Descrição do sujeito: homem de tez morena, sentado numa cadeira de rodas, aparentemente com as pernas amputadas pelos joelhos. Olhos negros, baços. Um sinal de proporções significativas na testa (imediatamente acima da sobrancelha esquerda). A cadeira de rodas tem um chapéu de sol azul anexado, do lado direito. Tem as unhas da mão direita, estendida em concha, encardidas. 

O Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas chamou o Homem-Bom

amigo! amigo! amigo! – três vezes o chamou. 

Três vezes o Homem o ouviu e três vezes o ignorou; baixou a cabeça, com vergonha.

Novamente ouviu

amigo! amigo! amigo!

Ignorou. Subiu as escadas. Andou uns metros e então sentiu o frio do metal a entrar pelo ventre. 

O Homem-Bom tombou. 

O Homem-que-pedia-esmola-numa-cadeira-de-rodas apanhou o chapéu preto do chão e começou a correr. As pernas do Homem-Bom  queriam correr com o outro, mas ficaram paradas.

O Homem-Bom foi bom a vida toda.

O Homem-Bom foi bom a vida quase toda. 

O Homem-Bom não o foi uma vez.

Conclusão: o erro define o Homem. 

A História do Homem-Elefante

Era um homem enorme: um exagero anatómico. 

No bairro diziam que ele parecia um elefante, devido ao tamanho excessivo do seu corpo. 

Elefante é um mamífero de grande porte da família Elephantidae. O Homem-Elefante é também um mamífero. Há, portanto, apesar das visíveis diferenças, semelhanças a um nível mais profundo, mais elementar. 

O Homem-Elefante, apesar do seu porte animalesco, do volume exagerado dos seus ossos e músculos, mexe-se com precisão matemática. Os seus movimentos parecem desenhados a régua e esquadro; os passos do Homem são leves, como os de um bailarino.

*

O Homem-Elefante é dono de uma loja de loiças.

Vende pratos com cornucópias roxas desenhadas, jarrões com motivos primaveris, bules de porcelana chinesa. Os corredores entre as prateleiras – onde estão expostos os objectos – têm cerca de um metro de largura. Todos os dias aquele Homem enorme se move entre os estreitos espaços vazios sem tocar no que quer que seja. 

As pessoas do bairro dizem que é magia.

Todos os dias os homens apostam que algo irá cair e partir-se. 

Todos os dias os homens esperam o barulho da loiça a estilhaçar.

Todos os dias o Homem entra na loja de manhã e sai ao final da tarde: apenas o silêncio e o desespero dos homens se alastram. 

*

Um dia, há uma enorme explosão no bairro.

Há bocados de vidro por todo o lado, barulhos de sirenes, restos de agregados e gritos.

Os homens falam uns com os outros, assustados. As suas vozes tremem. 

A vibração causada pela explosão propaga-se até à loja do Homem-Elefante, seguindo a densidade do chão, subindo as prateleiras de metal e madeira, chegando à cerâmica. 

Todos os objectos tremem e alguns caem no chão. Partem-se.

Ninguém liga ao sucedido (a não ser o Homem-Elefante, que varre os cacos e os deposita no caixote do lixo).

No final da tarde o Homem sai, com a mesma elegância de qualquer outro dia, da loja. 

A caminho de casa cumprimenta os homens ainda aturdidos com um gesto saído de um manual de geometria.

O caos é inevitável: uma lei universal. 


Flores

Falava-se de um homem que pintava as flores. Um homem que trazia consigo um balde de tinta e pintava as flores.
Para quê?
Por que motivo pintaria ele as flores?
Perguntaram-lhe: por que motivo pintas tu as flores?
Respondeu: estou farto da realidade; que a natureza seja o que quer.
Mas não podes mudar a realidade. Uma flor vermelha será sempre uma flor vermelha. A realidade é um acto democrático.
Uma flor vermelha é-o se eu não a pintar de azul.
Uma flor vermelha é sempre uma flor vermelha. Mesmo pintada de azul é uma flor vermelha.
O homem pegou na tinta e pintou os olhos de azul.
Perguntou: e agora?
Responderam: a flor continua vermelha.
O homem finalizou: não aos meus olhos.

O Amor, segundo Madame V.

– Sabe, sr. Peterr, os nossos desejos são coisas perigosas. Falo do desejo da carne, per carnem, essa cobiça por alguém que não nos pertence, mas que desejamos a todo o custo possuir, ter, saborear, cheirar. Falo dessa força lasciva que por vezes confundimos com o amor, porque a carne é facilmente amada, o pior é olhar depois, desvendar a cortina para lá da pele, do músculo, do osso. O essencial, o etéreo. Os nossos desejos são selvagens, irracionais. A beleza é para nós uma forma de pornografia visual, uma urgência de um orgasmo, de um movimento físico, de uma contração muscular, de uma libertação. O amor é outra coisa. O amor não é a admiração da beleza da rosa; a vontade de a colher da terra e a meter num jarro a enfeitar a casa. O amor é o perceber o cheiro dela e o que isso nos desperta, nos faz sentir, um conforto como voltar a outros lugares, algo que não é físico, palpável, efémero. É ir além disso. Criar memórias, adivinhar futuros. É perceber a beleza da pétala e o porquê dos espinhos. É querer picar-se nesses espinhos, porque essa dor o faz compreender a sua função, o faz viver esse amor. Porque o amor deve ser como a vida: deve doer, deve ser eufórico, deve marcar a carne, ser ferida e cicatriz e tudo o que nem sempre é belo. Porque o amor também é feio, também destrói para construir e constrói para destruir. O desejo não. O desejo faz festas na carne, culmina com o prazer e depois segue o seu caminho. É uma brisa suave. Mas eu não creio que seja isso que queremos. Nós queremos a tempestade, os ventos fortes que abanem tudo por dentro, que nos tirem tudo do sítio, que remexam as areias, que arredondem as esquinas, que nos levantem os telhados. Estou errada, sr. Peterr?

O nº 11

O homem viu: cavaram-se dois buracos.

Num escondeu-se um corpo: saco anatómico desprovido de vida. No outro inauguraram-se as fundações de um prédio: caixote de betão procurando vida.

Foi assim que se ergueu o número 11. Bloco, após bloco, após bloco, após bloco, após bloco, até se cruzar com o céu; de agredir o azul com o seu corpo rectangular e cinzento.

Terminadas as obras, encheram-se as fracções com gente. 

No lugar onde o corpo havia sido enterrado cresceu uma macieira. Em torno da macieira foi criado um jardim com relva e um caminho de pedras calcárias, que desaguava na entrada do prédio onde dormia o homem. O indigente não queria abrigo, não pedia uma casa; também não pedia dinheiro – o que espantava os moradores. Limitava-se a estar ali, olhando a árvore. O porteiro – ser de massa considerável, mas estático como uma montanha – desprendia palavras de ódio, tentando expulsá-lo: não há nada tão nojento quanto uma pessoa inútil.

O homem alimentava-se das maçãs que a árvore oferecia: pequena dádiva divina.

Por baixo da terra, as raízes da árvore embrulhavam o corpo; alimentavam-se da sua morte, da sua, aparente, inutilidade. 

Dentro das casas as famílias cresciam: alimentando-se uns dos outros: dinheiro, paciência, tempo. Tudo se resume a pequenos circuitos, aparentemente fechados, mas todos ligados, na enorme engrenagem da vida. 

A inutilidade é uma condição aparente.