Corpo rente
feito linha
tangente
(ou laço)
Corpo rente
feito linha
tangente
(ou laço)
Desenho: duas rectas perpendiculares.
O ponto de intercepção estava claro, mas ele reforçou-o com um círculo carregado a tinta preta.
O movimento da mão era orgânico, humano. Cada uma das rectas representava uma cronologia, uma pessoa: desde a sua concepção, até à sua memória.
O círculo preto representava o momento em que aquelas cronologias se cruzariam, se tornariam apenas uma: recta sobre recta. Assumiu esse momento como o amor: tudo o que o antecede nos conduz à convergência, tudo o que o sucede nos condena à divergência.
Depois desse ponto e até ao momento da morte efectiva, começava a memória. E depois da memória – avançando continuamente até ao infinito – restava o oblívio: a escuridão total.
Toda a cidade
se construiu em volta de nós
devo agora condená-la
à ruína?
O homem dorme. Por cima da sua cabeça, há uma aranha. Todas as noites a aranha desce da sua teia, entra pela orelha do homem, diz-lhe que o ama e, durante o processo, injecta um pouco de veneno – uma quantidade mínima, não capaz de o matar. Após esta acção o bicho regressa ao canto do quarto, onde fez casa. O homem acorda. Todos os dias se sente um pouco mais fraco, mas não liga: a vida desgasta o corpo: a erosão é um processo natural.
O homem vive sozinho.
Mentira: o homem não vive sozinho. Há a aranha. Uma companhia insignificante, mas uma companhia.
Uma noite, a aranha desce da sua teia e resolve fazer casa no ouvido do homem. Diz-lhe isso mesmo: quero fazer casa no teu ouvido (volta a injectar um pouco de veneno: há rotinas que devem ser cumpridas).
Nessa manhã, o homem não acordou. Tinha morrido. O corpo tinha cedido aos caprichos do veneno.
A aranha abandonou o ouvido do homem: um corpo morto não é casa para os vivos; um ouvido que não ouve é um órgão inútil: perdeu a sua função.
O homem ali ficou, deitado, abandonado à sua sorte: o veneno só serve aos vivos; o amor só serve aos vivos: depois do fim, transforma-se em memória.
O canto do quarto está vazio: casa desocupada.
Gostava de pernoitar
dentro do teu coração; encontrar
o conforto de um lar
onde coubéssemos eu e todos
os meus defeitos: as pernas tortas,
o tremor essencial, a minha miopia
para as coisas que se apequenam
ao longe: a flor, as luzes da pensão
onde jurámos um dia começar
uma vida a dois
.
Podes cobrar-me a estadia
prometo pagar-te antes de partir
queriam definir a palavra distância
e marcaram dois pontos numa folha:
. .
uniram-nos com uma linha recta
e disseram ser o menor espaço
que os separava.
depois foram mais longe:
aqueles dois pontos eram
duas pessoas,
dois amantes,
e o que os separava
era um oceano – uma
massa imensa
de água, um
abismo líquido
– e os amantes
alheios a tudo
isso, acenavam
um para o
outro
sorriam
um para o
outro
tolos apaixonados
e já não era um
oceano que os separava
era o amor que
os unia
como uma
ponte, ou um
hífen
ligando o
pronome
ao verbo
Ouvido no autocarro,
dito por um senhor de muletas:
– A vida é assim… Passa-se depressa.
Dito por uma senhora de meia idade:
– Os pobres é que carregam os sacos dos ricos.
O menino brincava de desenhar corações.
Eram desenhos muito pouco precisos, sem grande cuidado: corações imperfeitos; linhas sem destino, ligadas sem rigor geométrico. O menino desenhava com a mão livre, de memória (havia visto um esquema do coração humano num livro da escola), com o seu traço inocente.
Um dia, num dos corações, escreveu o nome de uma menina. Prendeu-o dentro daqueles limites, muito feliz consigo. Depois desenhou outro, do outro lado, e escreveu o seu nome. Dobrou a folha e os corações ficaram, com os nomes, um sobre o outro: cada um com as suas imperfeições, com as suas linhas infantis e os seus nomes, um sobre o outro.
Foi a primeira noção que o menino teve sobre o amor.
Olha: como o sol recorta a silhueta da cidade, as fachadas antigas dos prédios a namorarem, como se a vida não fosse um sopro e tudo se resumisse a betão e fuligem. Vê como as pessoas passam apressadas por nós, alheias ao fuso horário em que vivemos. Eu e tu não somos mais que pó de estrelas, restos cósmicos deixados ao acaso e que, durante esse acaso, se encontraram e deram as mãos e formaram uma coisa maior: um corpo celeste, que cresce todos os dias mais um bocadinho. Vês? Como os meus olhos se perdem de ternura nos teus; nesses trilhos secretos onde não deixas ninguém entrar com medo que descubram as tuas fragilidades. Mas não somos sempre rocha. Por vezes somos um pouco mais vulneráveis: não somos a faca, somos a carne; não somos o osso, somos o sangue que escorre e cai e se dissipa por todo o lado. Somos isso tudo. Deita a cabeça sobre o meu peito e sente a orquestra que dentro do meu corpo toca para ti – só para ti; sempre para ti. E deixa-me olhar-te enquanto os teus olhos se fecham e a noite cai sobre a cidade imune ao brilho que construímos juntos, aqui dentro, onde as estrelas escolheram repousar.