Sem título

Estava um dia muito parecido com o de hoje. Pela janela aberta, acima da minha cabeça, entrava uma massa de ar quente. O céu azulava-se a espaços, entre as nuvens altas de um tom acinzentado. Apenas se ouvia o bichanar da vassoura a varrer a fuligem e a areia dos terraços, a torneira a pingar para o balde preto. Sei que estava a ler, mas não me recordo o quê – um livro qualquer da minha biblioteca, certamente. Perpetuava-se a normalidade excessiva de um dia de verão; a calma. E então o som oco de um corpo a bater contra outro: a anatomia humana – ossos, músculos e tudo o resto – a chocar contra a pedra fria das escadas. Quatro degraus; uma distância relativamente pequena, uma altura que não chega a causar vertigens. Levantei-me, num salto. O livro voou por cima de mim, num movimento parabólico de projéctil, aterrando sobre a almofada do sofá. Ao passar a portada que dá para o terraço vi a minha mãe estendida, a respirar muito aflita, como quem vem à tona depois de um longo mergulho no mar; as costas contra os degraus, marcadas na zona do impacto. Ajudei-a a levantar-se. E enquanto o fazia pensava em como uma queda tão pequena, de uma altura tão insignificante, pode matar uma pessoa. Apenas um segundo em que o atrito entre os pés e o chão se quebra e ficamos condenados ao vazio que antecede a inevitável colisão. Nem todas as quedas nos matam, mas desde esse dia que olho para aqueles quatro degraus, aquele pequeno desnível, com um outro respeito. 

Lx

As ruas ainda guardam o teu nome

o teu rosto continua a brilhar intermitente

como os néons perdidos pelas fachadas

nas montras o reflexo de outros tempos,

as esquinas de outros beijos

(ainda os sentes nos lábios, também?)

Toda a cidade se construiu em volta de nós

devo agora condená-la à ruína? 

é Inverno e o céu gelado teima

em cair sobre as nossas cabeças

sigo o meu caminho, o mesmo 

itinerário de sempre, os mesmos

passos apressados de sempre

Tento atravessar a rua para chegar 

aonde me esperam, mas o semáforo 

teima em ficar vermelho

-Tenho a vida parada, suspiro

E então olho em volta, à procura

de respostas, à procura de algo

concreto: meia dúzia de luzes

acesas em meia dúzia de

apartamentos diferentes

o homem das castanhas

um carro a roçar o limite

de velocidade

o velho do café a esbracejar

Tudo isto em trinta e tal segundos

até o semáforo mudar de cor:

está verde,

é altura de avançar.

Manual de Cardiologia

Amares alguém
é dares-lhe a faca 
e esperares
o golpe
que te abre como uma porta

se tiveres sorte
do outro lado levam a linha
suturam-te 
e trancam-se por dentro

se tiveres azar
prepara-te
para a desordem:

o vento entra com facilidade pelas portas abertas

Problema de Aviação nº1

Sou um pássaro estragado

tenho o cérebro maior

que as

asas