Categoria: CARRIS

Linha verde 18:14

Na linha verde do metro, ao final do dia, todos entram na carruagem a correr, com medo de chegar atrasados aos seus destinos. Os miúdos pintam os rostos dos velhos com asneiras, e outras conversas com cheiro a charros e cerveja barata. Todos estão presos: às suas vidas; às suas rotinas. Passam os cegos, a pedir esmola. Ninguém os parece ver. Não consigo distinguir quem viverá mais às escuras.

744

A senhora entrou na paragem do 744, no Saldanha. Vinha curvada, como se o tempo a empurrasse para baixo e não a deixasse andar com as costas direitas. Devia ter perto de oitenta anos. Eu estava sentado a ler. Ia na página vinte e três d’O Estrangeiro (de Camus). A senhora parou ao meu lado, agarrada ao ferro. Levantei os olhos, marquei a página com o indicador e fechei o livro.

Sente-se aqui.

Não é preciso, o menino está a ler.

Não, não. Sente-se. Eu tenho tempo para ler.

Levantei-me, ela sentou-se. 

Muito obrigado, menino.

Condescendi com a cabeça e um sorriso. A senhora sorriu-me de volta. 

Quando saí do 744, na paragem junto ao Estádio 1º de Maio, fiquei a pensar se devia ter dito aquilo àquela senhora de quase oitenta anos: “tenho tempo”.

783

Um senhor ajuda uma senhora a subir o degrau do autocarro. Devem ter ambos mais de setenta anos. O senhor traz vestido um fato de flanela e uma boina na cabeça. A senhora, além da bengala, carrega um saco de plástico cheio de coisas que lhe deviam faltar em casa.

Primeiro o pé direito. – disse ele, enquanto ela, com o medo próprio da idade se debatia com o equilíbrio – Faça força. Eu não a deixo cair. 

Muito obrigado.

Tem o passe? Vá sentar-se. Primeiro o pé direito, o esquerdo é só para ajudar.

Muito obrigado.

Isto quando a gente chega a velhos temos de aprender outra vez a andar.

758

Ouvido no autocarro,

dito por um senhor de muletas:

– A vida é assim… Passa-se depressa.

702

Dito por uma senhora de meia idade:

– Os pobres é que carregam os sacos dos ricos.

744

Um miúdo, de sete ou oito anos, em conversa com o pai:

Pai porque é que os autocarros vão de um lado para o outro?

– Porque é assim que funcionam as linhas de autocarros. Uns vão, outros vêm… A linha de autocarro une dois pontos: um de partida, outro de chegada.

– Então é como a vida…

720

No autocarro 720 vai uma menina. Ninguém lhe parece ligar, embora ela gesticule freneticamente, enquanto solta sons agudos indistinguíveis. À sua frente vai – julgo – a sua mãe, ou alguém encarregado de a vigiar. Só lhe vejo os cabelos grisalhos, sem nunca lhe ver a cara. Apesar de todo o aparato que a menina faz, as pessoas passam e nunca se sentam perto, como que com medo de serem contagiadas por uma doença qualquer. A menina tem uma deficiência intelectual. Imagino que siga a caminho do Hospital da Estefânia, com a senhora. Está sempre a sorrir e a gesticular. Parece feliz. E ninguém que tenha a perfeita noção da realidade consegue ser tão feliz e sorrir tanto. As pessoas entram no autocarro e continuam a afastar-se. Terão medo que a felicidade seja contagiante?

711


Sempre que vejo uma pessoa a ler um livro no autocarro, ocorre-me ir até ela e perguntar-lhe se está boa, se é feliz, se me pode dizer que horas são, se no final da história tudo vai ficar bem.           

744

No 744 um homem de cabelo grisalho, baixo, para um homem visivelmente mais novo e mais alto:

– Já ninguém planta nada. Olha, eu lá no meu quintal… Naquele bocadito de terra que lá tenho, sabes? Plantei uns tomates, umas alfaces, umas coisitas. As coisas no supermercado sabem-me todas a água. É pêssegos em Fevereiro, laranjas em Setembro… Anda tudo trocado. É tudo criado em estufas, cheio de hormonas. No outro dia vi um tomate com quase um quilo. Mas aquilo devia ser só água. Água e químicos. Nem tem sabor. As coisas dos supermercados não têm sabor. As pessoas sabem lá o que é um bom tomate, ou uma boa alface. O que é bom sabe a terra. 

756

Ia no 756 quando a vi. Sentou-se à minha frente. Enquanto falava ao telemóvel encaracolava as pontas dos cabelos, num gesto repetido durante todo o percurso. Trazia uma espécie de camisa enrolada nas mangas, com padrões excêntricos e cores berrantes que contrastavam com o moreno leve na pele, e os olhos escuros. O sorriso foi o que mais me prendeu a ela. Por mais que quisesse não conseguia desviar o olhar. Era um sorriso demasiado livre para pertencer. Tinha o tom pérola que encontramos nas maiores luas de verão. Não sei o que havia para lá daquela imagem: nada lhe disse. Nada a mim chegou, também – a não ser a largura daquele sorriso que ainda guardo comigo. E dei por mim a pensar: será o teu sorriso tão bonito como o teu coração? Quis acreditar que sim.