Ainda os planetas
não haviam tomado o seu rumo
já o meu avô pedalava
a sua velha pasteleira
isto leva-me a crer
que são os homens que definem as órbitas
dos astros. Não o contrário.
Ainda os planetas
não haviam tomado o seu rumo
já o meu avô pedalava
a sua velha pasteleira
isto leva-me a crer
que são os homens que definem as órbitas
dos astros. Não o contrário.
não sei que música tocava ao fundo
se rock progressivo
uma valsa, ou um tango
talvez fosse apenas alguém
a assobiar uns acordes
de country
love me two times babe
tu do outro lado do balcão
à socapa procurando um parceiro
para um slow
love me twice today
se me tivesses escolhido
não te teria largado quando o
silêncio chegou
love me two times babe
cause I’m goin’ away
entras e acendes a luz
chega primeiro a tua sombra
denunciando o vestido
dançante que trazes
de segunda pele
e eu fico a contemplar
à cabeceira esse jogo de sedução que fazes entre a porta do quarto e a nossa cama
O céu
por vezes
também
chora lágrimas de crocodilo
E eu que sou um maníaco pelas arrumações
adoro quando
me desarrumas os lábios
Às vezes, os olhos
não chegam para veres
o que precisas
de ver
(Fecha-os)
Na mesa do café eu teimava em olhar o jeito fugidio com que contavas as pedras da calçada. O asfalto líquido arrefecia na chávena até encontrar o equilíbrio térmico com o nosso amor condenado. Falaste em rotina; eu falei noutra coisa qualquer: uma nuvem em forma de gato, viste? (Claro que não. Estavas demasiado ocupada a chorar todas as lágrimas.) Não sei o que se passou entre nós. Alguém deve ter cortado a linha e as palavras acabavam por cair no oblívio. Repetiste a palavra rotina (como quem grita perigo até chegar aos ouvidos certos), mas eu ainda pensava na nuvem e no gato e no jeito que me dava que o amor tivesse sete ou nove fôlegos e não morresse de hipotermia só porque escolhemos olhar para cima, em vez de olharmos em frente.
Somos casas. Quem está de fora não sabe o que se passa dentro das nossas paredes. Às vezes, há quem entre e veja todas as fissuras e imperfeições. Então há os que fogem a sete pés, com medo que o tecto caia. E os que ficam: na esperança de um dia morarem em nós.
O homem pediu que se fizesse luz.
Gritou. Um grito pesado, como um gesto.
A noite era uma incerteza lutuosa com a qual ele guerreava: braços esticados, movimentando-se freneticamente; pés paralelos, tacteando a superfície.
O homem gritou a palavra luz. O homem gritou a palavra lâmpada. O homem gritou a palavra candeeiro. O homem gritou a palavra lanterna. Nada. A inconsequência do som, das palavras arremessadas como objectos, era gritante.
As pessoas à sua volta afastavam-se: a loucura é uma forma de distância.
O menino gritou: abre os olhos.
O homem abriu os olhos: luz.
Palavras, acção, consequência.
A palavra deve cortar como um bisturi na mão de um cirurgião.
Dentro da minha cabeça tudo parece mais poético, mais artístico. Parece que quando as palavras saem, e apanham ar, oxidam, como o ferro escarnado em paredes antigas. Soo muito melhor debaixo da pele, dentro do perímetro craniano. Cá fora tudo se atropela, tudo parece gasto. Era óptimo que as palavras jorrassem para fora do corpo como o sangue quando cortamos uma artéria. Seria um belo e infeliz destino para as palavras: jorrarem do corpo como sangue. Mas é talvez isso que elas sejam: sangue. Algo que corre por dentro num circuito fechado. Talvez.